domingo, 27 de março de 2011

CONTO: Bem-Visto

Bem-visto era a alcunha do coitado do seu Victor. Viera da Rússia, Prússia ou Sibéria. Conhecimento de sua origem, ninguém tinha ao certo. Calado, Bem-visto parecia um homem correto. Abrira a quitanda da Rua dos Jardins, onde de jardim só mato tinha.

Para desespero do coitado, apareceu um lacaio cheio de palavras presas, a fala mansa; culpado como malandro. A primeira vez pegou fiado. A segunda, conversou, escutou, falou, implorou e não se fez de rogado. Cuspiu a alcunha de Bem-visto. “Bem-visto de santo não tem. Tem uma quitanda e ainda usa óculos vulgarmente chamados fundo de garrafa”, ia lá o lacaio, proclamar seu desgosto, trovando prosas todas desdenhosas. Pena de Bem-visto, que sossego só teve quando viajou para uma praia com o mesmo nome.

Visto que concerto não tinha, Bem-visto usou da madrugada para pensar em uma alcunha para o lacaio; tal adjetivo, insulto seria. Bem-visto, sem resignação, apenas paz queria.

Pulou à cabeça: Ladainha!

“Pois bem meu caro, é assim que agora vos chamo. Ladainha, mal pagador e contador de história”.

E lá se foi à relação de Bem-visto e Ladainha, arrastando-se ao tempo, sem direção ou coesão.

Engraçado o que vida nos traz, quer lembrar o autor. Se destino existe, prova ignorada não pode acontecer.

Bem-visto caolho, cego de vez ficou. Lastimou-se. “Barganha com Deus não se faz”, consolou-se. E para piorar a mazela, caiu doente e ficou banguela . Ouviu-se dizer que até a capital foi, onde fez de conhecer um doutor que tratamento tinha. “Carece de doador. Uma córnea e melhoro o olho do senhor”, explicou.

Ladainha, de malandro loroteiro, perdeu o júbilo e à depressão se rendeu. Entendeu que Bem-visto antagonista nunca fora. Ofensas tornaram-se, à vista do passado, como brincadeiras. E Ladainha reconheceu que perdeu a maneira. Não era de se tratar mal um senhor, que nada de ruim merecia.

O tempo se deu espaço e Ladainha de “Pé inchado” passou a ser chamado. Bebia mais do que aguentava e nem a conta pagava.

Certo dia, o martírio foi demais. Correu até Bem-visto e uma córnea ofereceu. “Ô Ladainha deixa de ser idiota. Boba brincadeira não faz rir”.

Brincadeira nunca foi, nem deixou de ser. Deu uma córnea para Bem-visto, com o intuito de palhaçada poder voltar a fazer. Agora apelido na diferença a vizinhança tinha: Ladainha virou caolho. Voltou à rotina de troca de insultos com Bem-visto. E acredite o leitor: nunca nem tocaram no “causo” da doação.

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