quinta-feira, 24 de março de 2011

O Paletó, de Raphael Michael

E andava por aquelas bandas um velho litigante que tinha a alcunha de Aguardente. Ébrio habitual, a bebida era menos amarga do que a vida.

Casara-se com dona Esmeralda, moça educada em colégio de freiras, lá em Petrópolis. Tinha aptidão por letras, o que a levou a lecionar Francês e Latim. Manhã, tarde e noite. Não se rendia ao tempo, nem ao cansaço.

O rotineiro Aguardente era o primeiro a chegar ao bar e ultimo sair. Certo dia, trocando as pernas, deparou-se com um bilhete umedecido. Pois bem, se embriagado não estivesse, usaria a lógica para saber que nada valia. Fora jogado por qualquer pé-rapado sem sorte. Todavia, enfiou o bilhete no bolso no paletó e cambaleou para casa. Desabou na cama como pedra, de roupa, sapato e até óculos.

Roncava tão alto que Dona Esmeralda ficava insone. Já procurara médico, macumbeiro, curandeiro e nada adiantara. O ronco continuou.

Saindo mais cedo do que Aguardente, Esmeralda deu-se a permissão para pegar seu paletó para se proteger do frio que fazia no caminho da casa à escola.

O ébrio hibernou um pouco e também se pôs de pé, com uma fissura imensa de tomar o primeiro gole. No bar, tratou de logo pedir uma dose da cachaça mais barata. Revistando o corpo, atrás de seu habitual cigarro diário, notou que esquecera o paletó em casa. E para casa só voltaria se pudesse levar o bar consigo.

Por volta do meio-dia apareceu um rapaz, dos 15 ou 16, gritando que um cidadão do bairro tinha ganhado na loteria.

Contou também a história da dona que admitiu ter “achado” o bilhete.

- Como podes? Que cousa boçal. Perdeu o próprio bilhete e não sei quantos milhares de reais. – proclamava o dono do bar com a voz alterada.

- Não foste tu que deste por perdido um bilhete da loteria? – o rapaz indagou o dono. – Vai saber. As vezes ganhaste e nunca ficarás sabendo.

Aguardente, prestando atenção na conversa, disparou: há pior mazela mundana do que perder milhares de reais? Decerto iria me matar.

E, ao final do dia, chegou à casa e encontrou o armário de dona Esmeralda vazio.

Em cima da cama jazia um bilhete:” querido esposo, ganhei uma bolada e parti. Por favor, não guarde ressentimento. Lembre-se do homem que perdeu o bilhete da loteria. Poderia acontecer cousa pior?”

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