sexta-feira, 18 de março de 2011

Qual o Propósito?

A igreja estava vazia. Vazia como esteve nos últimos 33 anos. De todo, os tempos eram outros. A poeira, que se acumulava em cada um dos bancos de madeira espalhados, veio de fora. Veio de um tempo em que as pessoas pensavam e agiam de forma diferente. De um lugar, onde a crença era algo fundamental para mantê-los vivos. O pó era o porquê, e o significado se encontrava nas palavras proferidas pelo então recém ordenado padre. Talvez ele fora o último, não tinha tanta certeza disso. Certo seria apenas de que ele era ele quem restava.

E naquela manhã de domingo, como fazia há exatos 33 anos, ele mais uma vez dava início a santa missa. Era impossível não se lembrar de Santo Antônio, e vieram dele suas primeiras palavras.

“Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.”

Ouviu-se um barulho no exato momento em que o padre descansava a voz, suspirando o ar com força e deixando-o que voltasse ao seu lugar.

A porta fora aberta; distante, uma pouca claridade entrava e junto dela alguém.

Era a primeira pessoa que aparecia em anos; era como se tal porta tivesse sido aberta pela primeira vez.

Aquele homem, e não mais uma simples pessoa, caminhou lentamente até o altar, passando por cada banco empoeirado.

Suas mãos estavam enfiadas ao bolso, e ele logo as tirou, sentando-se bem em frente ao padre, a menos de um metro de distância.

O homem o aplaudiu. Um aplauso jocoso, e um olhar perverso, precedido por um sorriso encurtado.

- Você é o único. – disse o homem balançando a cabeça para o lado.

O padre nada disse. Tentou continuar a missa como se nada tivesse acontecido; mas a presença do homem perturbou seu coração.

- Até quando? – perguntou o homem inclinando seu corpo para frente.

Respirando fundo, o padre fechou levemente seus olhos, e pela primeira vez olhou nos olhos do homem.

- Até quando for preciso. – disse com uma voz serena.

- Não é mais preciso. Veja este lugar. – respondeu apontando para o redor. – Está cercado de pó e de imagens que não mais tem significado. Até quando você vai acreditar que a esperança se encontra em suas palavras?

- Quem é você?

- Sou o enviado. – respondeu ironicamente.

- Pois diga a quem o enviou que eu não preciso de nada.

- Do que você precisa então?

- De Deus. – disse levando a mão ao coração.

- Deus não existe. – falou com ênfase. – Deus não existe. – repetiu lentamente as palavras. – É muito difícil para você entender isso?

- Ele não existe para você.

- E para todo o mundo! – gritou abrindo os braços. – Em que mundo você vive?! Acho que você se esqueceu de sair desta igreja para perceber a revolução que aconteceu do lado de fora. – continuou. – As pessoas não precisam mais de Deus! Aliás, as pessoas não precisam mais se apegar a crença de um Deus. Nós somos os deuses! Houve a fusão de todas as religiões em uma única religião: a ciência. E não é lógico você ir contra ela.

- Você quer dizer que não é lógico a pessoa ir contra a lógica?

- Redundante e paradoxal, não? – disse. – Já está mais do que provado que Deus não existe. Nunca existiu! Como você argüiria sua única, e isolada, crença? – continuou. – Temos a cura para todas as doenças. Temos remédios para todo o tipo de infelicidade. Temos a resposta para todas as perguntas, e o melhor, temos a certeza da vida eterna! Não uma vida eterna baseada em filosofia e religião, e sim, uma vida eterna comprovada; uma renovação constante de nossas células. Nós somos imortais!

- E porque você quer me convencer sobre tudo isso? Vá em paz e me deixe viver e morrer por um Deus que não existe.

- A sua ignorância me incomoda.

- Não há remédio para isso?

- Claro que há. Mas eu não quero tomá-lo.

- Mas o que o faz não querer tomá-lo? Não foi você mesmo que disse que há cura para tudo?

- Você duvida disso?

- Não duvido da cura, e sim, do desejo de que as pessoas têm em serem curadas. Existem defeitos os quais nos apegamos e pensamos que são inerentes a nossa pessoa. Existem defeitos os quais não nos imaginamos sem eles. Qual seria o motivo de você continuar a se sentir incomodado por minha ignorância?

O homem manteve-se calado.

- Qual o propósito da sua vida? – perguntou o padre.

- Viver.

- Mas você vive para o quê?

- Para aproveita cada dia e ser feliz.

- E depois?

- Não há depois. Não há mais tempo. – disse estendendo um dos pulsos sem relógio. – Você não consegue enxergar?

- Então qual a graça em viver se não há mais metas, tampouco, tempo? Se não há mais o que crer, o que esperar? A única coisa que o mantém vivo é saber que eu não concordo com você. A única coisa que o faz sentir vivo, é saber que há algo que você pode se incomodar, algo que possa tentar mudar. Porque sem isso, a vida não passaria de uma série de atos preordenados sem um fim determinado. Passamos a maior parte de nossa vida sendo felizes, mas não por sentirmos a verdadeira felicidade, e sim por esperarmos sua chegada. A vida nada mais é do que uma mera expectativa; expectativa essa que, do momento que não mais se mostra viável, retira de nós toda a alegria. Dizem que temos que aproveitar o momento; mas se esquecem de que são os sonhos que nos fazem buscar tal momento. Sem eles, nada somos. Com eles tudo podemos ser.

- Então você vai continuar acreditando em Deus?

- Até o dia em que você entrar por esta porta com a única resposta capaz de satisfazer a inquietação do coração humano.

- Qual?

- Não a cura para as enfermidades. Não a cura para as infelicidades. Não a certeza de que poderemos ser imortais. Nós precisamos de uma única resposta; resposta que a ciência nunca poderá nos dar. A pergunta é simples. – disse o padre dando uma pausa em sua fala. – Qual o propósito? Qual o propósito de termos sido criados? Penso que o ser humano deveria parar de procurar respostas para a morte, e então, começar a buscar o significado do primeiro sopro da vida. Assim como no mundo não há criação sem utilidade, seria inadmissível pensarmos que fomos criados apenas para vivermos dia após dia. Pensarmos que não somos importantes para algo maior; pensarmos que somos fruto do acaso, de uma das bilhões de possibilidades postas à disposição da natureza, seria admitirmos a nossa insignificância para com o Universo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário