quinta-feira, 30 de junho de 2011

"A Dentadura" de Raphael Michael

O cabo Robério, que acabara de retornar de um longo período na fronteira do Brasil com o Paraguai, foi recebido em sua pequena cidade como um herói de guerra. De guerra, cabo Robério só conhecia o nome. Disparara arma de fogo duas ou três vezes na vida. Rezava o terço todas as noites, pedindo a Santo Expedito um jeito de mandá-lo de volta à casa.

Chegado o tão esperado dia, não faltaram convidados e aperitivos. Seus amigos cansavam os ouvidos de Robério, querendo saber como era estar em uma guerra. E por mais que o cabo fosse um grande medroso, enchia o peito para contar seus feitos fictícios.

“Andas vendo muita televisão”, dizia uma voz ao pé de seu ouvido. “Cuidado para não desconfiarem”, voltava a dizer. A voz era chata e não fora convidada para o evento. Perturbada a alma do jovem, este, com a finalidade da cura, consumia todas as bebidas possíveis.

Sua ex-noiva, dona Emília, era só risos, não somente pelo retorno do primogênito de dona Cristina: ela exibia, a torto e esquerdo, seus novos dentes. Na verdade, era uma dentadura. “Muitos por estas bandas não sabem nem o que é um dentista”: agora era a vez de a voz irritante incomodar dona Emília.

Findas as boas-vindas, por volta da meia-noite, os homens já mais pra lá do que pra cá, tropeçavam nas palavras e jogavam conversa fora.

Mais à vontade, cabo Robério não se deu conta de que, a cada fala, aumentara a história. Gesticulava e procurava por Dona Emília, a qual lançava um branco e satisfeito sorriso.

- Tens orgulho de mim, um herói de guerra. – gabava-se o cabo dirigindo-se à ex-noiva.

- Vá lá e faça-lhe um beijo! – encorajavam os amigos de copo, já fedendo ao odor do álcool.

O que Deus não tinha provido, a bebida resolvera. Coragem não faltava. E lá se foi o veterano de guerra combater sua timidez e vergonha.

Agarrou a mulher pelo braço e puxou-a com tanta força que a fez cuspir algo. Embriagado, com a visão turva, de nada se importou, atacando-a com um beijo.

Separando rosto de rosto, notou que todos debruçavam na risada. A dentadura de Dona Emília voara à direção do copo do capitão Venâncio, o coronel do mato, que, ao ser atingido em batalha, ganhara secretamente a alcunha de “perna curta”.

Furioso, Venâncio confrontou o veterano de guerra. Todos esperavam uma briga daquelas, que entraria para a história da cidade.

Ao contrário, Venâncio desviou seu olhar para as calças do rapaz: de tão molhadas, só mereciam a única explicação: borrara-se ele, como nunca visto, em toda calça.

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